Acordar de manhã cedo, ver o relógio antigo e feio (comutado recentemente por uma versão mais contemporânea e gira) do pai, com os números encarnados e desmedidos que me incomodam de noite quando não consigo adormecer. Levanto-me devagar, não “devagarinho”, não podemos usar “inho”, senão somos censurados. Depois de estar na universidade somos privados de certos devaneios em público. Já não “parece bem”, já não é “adequado” dizem eles. Depois de tocar com os pés descalços no chão de madeira que a mãe escolheu com tanto cuidado para aquela casa, atravesso o quarto e piso o tapete que eu escolhi. Assim como me deixaram escolher as cortinas, a cor do “puff”, o candeeiro... Já não me recordo qual foi a idade em que me foi dada uma escolha, em que me foi permitido optar, decidir o que eu queria (ainda hoje disputo com a incerteza de saber o que tenciono). Ao abrir a janela entra um ar que ainda é frio, faz os pêlos dos braços eriçar, e deixa-me arrepiada. O frio do alvorecer é dos meus eleitos. Gosto do frio da noite, mas o frio matinal deixa-me sempre desperta, com vontade de criar. Saio do quarto e desço as escadas, ao chegar à cozinha apercebo-me que o irmão já se encontra alastrado no sofá da sala a ver os desenhos animados, pergunto-me se também ele acha que já chegou à idade de escolher. Leva até ao sofá da sala os quatro peluches com que adormece (em segredo de justiça claro está) que o seguem nesta façanhas de manhã de fim-de-semana em que ele crê ter a casa só para si. Onde ergue, melhor que qualquer arquitecto, uma cidade utópica entre a mesa do café e o sofá, uma cidade onde coabitam criaturas da época dos dinossauros, monstros e ogres saídos de qualquer episódio do senhor dos anéis. No seu pequeno mundo, na sua pequena cidade despojada de um sistema de canalização e saneamento e sem Constituição, a urbanização funciona até chegarem os dragões, esses acabam por destruir a metrópole, mas aí já acabaram os desenhos animados e o miúdo aborrece-se, procura uma actividade nova no exterior. O exercício, contrariamente a mim, já lhe é intrínseco. No relvado debaixo da amoreira, vejo o sol a acabar de ascender, enquanto sopro sobre uma caneca com leite achocolatado acabado de aquecer, examino as nuvens desenhadas no céu. O orvalho ainda não evaporou, ainda se sente o cheiro que o frio da madrugada deixou sobre as árvores e a terra húmida. No mp3 passa “La Valse D'Amélie”, acompanhado pelo canto dos pássaros é a melodia perfeita para um acordar difícil. As insónias são horríveis dizem-nos os sofredores. Pois eu troco, troco uma noite de pesadelos por uma semana de insónias. Ainda me dou ao trabalho de os empacotar em papel brilhante e finalizar com um laço só para tornar a encomenda mais aprazível. Aos poucos a vizinhança vai despertando, ouvem-se as portadas a serem abertas, o barulho dos aspiradores azafamados, o ladrar dos cães que reconhecem os donos. É nesta altura que volto para dentro de casa, que volto a subir as escadas, que volto a encontrar o conforto das almofadas, o quente do cobertor que não teve tempo de perder o calor do meu corpo. O silêncio da alvorada é substituído pelo alvoroço da rua, o canto dos pássaros é suprimido pelo bramir dos motores dos carros que passam. Já não me interessa o que passa no leitor de mp3, espero que os sons da modernidade me adormeçam ou pelo menos me deixem entorpecida, que me deixem repousar umas horas. O cansaço que se aglomera arranjou um sítio especial para se fazer notar. Concentrou-se por baixo dos meus olhos, formando duas olheiras fundas e pardas. A comodidade de usar óculos é o sucesso de ajudarem a camuflar. Quando me perguntam, digo que são olheiras de cansaço, que é das noitadas de trabalho, do dormir pouco. Não deixa de ser verdade. O não querer dormir para não sonhar transforma-se numa batalha entre mim e os senhores pequenos que vivem no meu corpo e o movem. O dormir sobre um braço, o calor humano, ajuda. Mantém os fantasmas escondidos no armário, e os monstros que vivem debaixo da cama quietos, e aí vem o sono. O sono que tanto menosprezo, que tanto desejo evitar, chega com leveza e serenidade, e leva-me até aos sonhos. Os sonhos que alguém me disse que “têm que ser colocados nas estrelas, mesmo que nunca se alcancem”.
Imagem Via www.davenit.deviantart.com
1 comentário:
:')
Muito bonito, e até comovente numa ou outra parte... Afinal até tens jeito para escrever, deverias arranjar um tempinho entre a azáfama da universidade, e a (des)informação deste para escrever num outro blog aquilo que vais sentindo...
Expor assim os nossos fantasmas interiores, por poucos e pequenos que sejam, não os faz desaparecer... Mas ajuda, saber que não somos os únicos, é fantástica a sensação com que se fica depois de receber certos comentários, depois de ler noutros espaços coisas que também nós pensamos, sentimos, sofremos...
A solidão é o maior medo do ser humano, por mais que alguns teimem em negá-lo... E é só por isso que mantenho aberta a minha porta virtual, caso contrário, também ela já teria fechado à muito.
(E sim, eu sempre soube que tens sentimentos, por mais que tentes camuflá-los por vezes... É por seres assim, um "choque de personalidades" dentro de uma só, que gosto de ti. ;) )
Keep goin'...
Beijo*
Enviar um comentário